domingo, 28 de março de 2010

Texto de apoio para o Estudo sobre “Kardecismo X Umbanda

José Henrique Motta de Oliveira (Arashakamá)






1 O Kardecismo no Brasil














O Espiritismo, depois do Catolicismo, é a tradição de origem européia mais importante na formação da Umbanda, interferindo diretamente no discurso doutrinário. Os Livros de Allan Kardec são as referências literárias mais citadas quando se trata de explicar a origem dos conceitos fundamentais à prática religiosa como a reencarnação, a lei do “carma” e a evolução espiritual adquirida através da prática do amor ao próximo. Formalmente, a obra de Kardec contém, também, a matriz do tom racional e científico que permeia a retórica umbandista, mesmo quando as informações veiculadas baseiam-se exclusivamente na fé que o crente pode depositar.






Hippolyte Léon Denizard Rivail, ou simplesmente Allan Kardec[2], fundou o espiritismo na França. Para Sandra Jaqueline Stoll, Kardec estabeleceu os termos da inserção do Espiritismo no contexto religioso da modernidade quando definiu – na Introdução de seu primeiro livro, O Livro dos Espíritos (1858) – “que a doutrina espírita ou espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os espíritos ou seres do mundo invisível”[3]. Embora Kardec tenha admito que o pensamento que inaugurara não representava uma idéia nova, podendo ser encontrado, em fragmentos, “na maioria dos filósofos da Índia, do Egito e da Grécia”[4], Stoll sublinha que os argumentos do filósofo francês reproduziam também a visão cientifica da época, absorvendo, por exemplo, o evolucionismo de Charles Darwin[5] para promover uma revisão da doutrina espírita no livro A Gênese (1868), no qual procurou conciliar razão e fé na questão da origem da raça humana[6]. Para a antropóloga, essa discussão é, no conjunto da doutrina, secundária.






Mas serve como parâmetro para se problematizar, nos mesmos moldes, a origem e a evolução dos espíritos, questões que introduzem a temática doutrinária propriamente dita: o destino pós-morte, a reencarnação e a vida “na erraticidade”. São esses os temas tratados nos demais capítulos d’O livro dos espíritos. [7]














De modo bastante resumido, a doutrina Kardecista postula que a vida transcorre num universo temporal e causal, no qual os indivíduos recebem de volta os resultados das próprias ações passadas. Neste contexto, o egoísmo seria a fonte de todos os males e a caridade a fonte de todas as bênçãos. O trabalho do encarnado na Terra, pautado pelo bem comum, é tido como um pré-requisito para a evolução espiritual e a conquista de dimensões superiores de existência, objetivo que seria buscado incansavelmente através de sucessivas encarnações. Do mesmo modo, enfatizam-se o livre-arbítrio e a força de vontade como peças chaves no caminho da espiritualização da espécie humana. Todas essas considerações são vistas como conseqüências lógicas da eternidade da alma, cuja realidade é, para Kardec, dedutível a partir da observação metodológica de fenômenos mediúnico-espirituais[8]. Do ponto de vista religioso, o Espiritismo postula a existência de Deus. Entretanto, este Deus estaria inacessível aos homens dada a incomensurável distância que os separa. Mais próximo encontram-se os espíritos desencarnados para quem a missão de ajudar a humanidade seria o meio de expiar faltas passadas e, assim, progredir em busca da perfeição.














No Brasil, o primeiro centro espírita data de 1865, quando Luís Olimpio Teles de Menezes fundou, em Salvador, o Grupo Familiar do Espiritismo. Entretanto, desde o início dos anos 60 que já se realizavam sessões secretas na Corte[9], atraindo o interesse das elites e das classes médias locais, dentre os quais intelectuais, médicos, engenheiros e militares. A literatura e a escrita foram importantes instrumentos de divulgação da doutrina de Allan Kardec. O grupo liderado por Teles de Meneses foi responsável pela edição do primeiro jornal espírita no país: Echos de Além-Tumulo, editado em 1869. O periódico, além de permitir acesso à doutrina de pessoas que não dominavam o idioma do codificador do Espiritismo – o Francês –, desencadeou a ira da hierarquia eclesiástica que se traduziu em Carta Pastoral alertando os diocesanos “contra os erros perniciosos do Espiritismo”[10].






Em 1875, a Livraria Garnier lançou a primeira versão em português d’O Livro dos Espíritos. A reação da imprensa foi de profundo repúdio. Entretanto, Ubiratan Machado argumenta que se os “intelectuais da época eram racionalistas e céticos, o povo, ávido de soluções mágicas, esgotou rapidamente o livro”[11]. Naquele mesmo ano, Garnier lançaria mais três títulos espíritas: Como e porque me tornei espírita, de J. B. Borneau, e mais duas obras de Kardec, O livro dos médiuns e O Céu e o inferno[12].






O investimento no campo editorial, porém, não foi a única estratégia adotada pelos espíritas para divulgar o kardecismo. A Federação Espírita Brasileira (FEB) também desempenhou importante papel na divulgação da doutrina kardecista em todo país. A instituição, fundada em 1884, desempenhou o duplo papel de orientar doutrinalmente a profusão de grupos espíritas e de representá-los institucionalmente. Entre as atividades desempenhadas pela FEB encontravam-se a realização de sessões religiosas e serviços de caráter assistencial, como a aplicação de passes, o “receituário mediúnico”[13] e a doação de remédios homeopáticos. Aliás, Sandra Jaqueline Stoll acredita que as atividades terapêuticas praticadas pelo espiritismo contribuíram decisivamente para consolidar a nova religião no cenário nacional, tornando famosos os médiuns Francisco Cândido Xavier, Zé Arigó, Dr. Queiroz, Geraldo de Pádua e Divaldo Franco[14]. “Além dos ‘passes’ e da atividade receitista, as chamadas ‘cirurgias espirituais’ constituem uma das formas mais conhecidas de divulgação doutrinária” [15].






Nesta perspectiva, a antropóloga consolida a idéia de que, embora, no Kardecismo francês prevaleça a ênfase na dimensão científica – uma vez que fora definido como sendo, ao mesmo tempo, uma filosofia, uma doutrina e uma ciência –, no Brasil predominou a feição mística e religiosa[16]. Tal peculiaridade levou o Espiritismo brasileiro a se adaptar a um contexto multicultural no qual predominavam práticas do catolicismo popular e dos cultos afro-indígenas. Cândido Procópio Camargo, na década de 1960, já perguntava se o aspecto religioso da obra de Kardec não seria o responsável pelo sucesso entre tantos brasileiros[17], implicando, inclusive, no “rompimento da barreira de classe: religião da elite a princípio, o Espiritismo se disseminou rapidamente entre os segmentos mais populares”[18]. Sandra Jaqueline Stoll atenta para outros autores que atribuem o “abrasileiramento” do Espiritismo ao fato de que aqui a população desfrutaria de uma “intimidade” em lidar com santos, eguns e orixás[19].






Mesmo assim, as tradições africanas e ameríndias sofreram vigorosa discriminação entre os kardecistas mais ortodoxos, uma vez que consideravam os espíritos de índios e negros como “involuídos” e “carentes” de luz, apesar de Kardec não ter escrito qualquer linha a respeito da inferioridade espiritual de qualquer raça humana. Contudo, apoiavam-se na visão evolucionista do autor, quando este estabeleceu diferenças entre povos bárbaros e civilizados:






787 – Não há raças rebeldes, por sua natureza, ao progresso?






R: Há, mas vão aniquilando-se corporalmente, todos os dias.






a) Qual será a sorte futura das almas que animaram essas raças?






R: Chegaram, como todas as demais, à perfeição, passando por outras experiências.






b) Assim, pode dar-se que os homens mais civilizados tenham sido selvagens e antropófagos?






R: Tu mesmo o foste mais de uma vez, antes de seres o que és. [20]














Neste contexto, os adjetivos “selvagem” e “antropófago” estariam relacionados, principalmente, aos nativos dos continentes africano e americano. Assim, os espíritos de índios e pretos teriam que aceitar a superioridade da cultura ocidental, buscando-a como ideal, se desejassem evoluir espiritualmente. Ubiratan Machado lembra até que a filosofia espírita insistia em perceber a escravidão como “um fenômeno social de imposição cármica”[21]. Entretanto, o autor adverte que as ações da FEB foram abertamente abolicionistas, inclusive, patrocinando uma subscrição popular para alforriar escravos[22].














Tanto Machado quanto Stoll acreditam que se pode falar em um Espiritismo à brasileira: extremamente sincrético, enriquecido com várias práticas do catolicismo popular e de hábitos religiosos dos negros. Machado chega a propor três tipos de espiritismo: (1) o espiritismo kardecista, fiel às formulações francesas; (2) o espiritismo popular, o mais expressivo, apresentando intenso sincretismo com as crenças e hábitos do catolicismo popular e das religiões afro-brasileiras; (3) e o baixo espiritismo, que em última análise seria o abastardamento do espiritismo popular quando desaguava nas práticas da magia negra[23].






Sandra Jaqueline Stoll, por sua vez, realizou exaustivo estudo sobre o abrasileiramento do Espiritismo, revisando as principais obras bibliográficas das últimas quatro ou cinco décadas. No livro Espiritismo à Brasileira, a autora divide esta bibliografia em duas: entre aquelas que interpretam o espiritismo brasileiro como uma reinterpretação da matriz francesa, adequando a doutrina às especificidades históricas e culturais locais. Neste sentido, partindo do pressuposto de que a ordem cultural não é estática, “o Espiritismo ‘à brasileira’ seria uma versão original [recriação] e não um produto ‘menor’, ‘adulterado’ ou desviante” [24]. E a outra via interpretativa, utilizada com mais freqüência, seriam aquelas obras que balizam suas relações no campo mediúnico em termos de simples oposição, contrapondo o kardecismo às religiões de matriz africana: “onde o Espiritismo é definido como uma espécie de espelho invertido destas, seja quanto às suas características sociais e étnicas, seja quanto à estrutura ritual e doutrinária” [25].






A antropóloga propõe, conduto, outro viés para se interpretar o abrasileiramento da doutrina de Kardec, sem que isto negue a pertinência das interpretações anteriores. Estas tendem, no entanto, a ocultar ou relegar a um segundo plano as relações mantidas pelo Espiritismo com a religião hegemônica no país, o Catolicismo.






O espiritismo é uma religião importada, que se difunde no país confrontando-se com uma cultura religiosa já consolidada, hegemônica e, portanto, conformadora do ethos nacional. Sua difusão, como postulam certos autores, foi em parte favorecida pelo fato das práticas mediúnicas já estarem socialmente disseminadas, de longa data, no âmbito das religiões de tradição afro. No entanto, em contraposição a estas, o Espiritismo define sua identidade, elegendo como sinais diacríticos elementos do universo católico. Deste, porém, não endossa apenas (...) certas práticas rituais. O Espiritismo brasileiro assume um “matiz perceptivelmente católico” na medida em que incorpora à sua prática um dos valores centrais da cultura religiosa ocidental: a noção cristã de santidade. [26]














Assim, pode-se concluir, que enquanto na França, em busca de legitimidade e de singularização, Allan Kardec reivindicou para a doutrina espírita o estatuto de ciência; no Brasil, essa tendência foi mantida apenas por alguns grupos da elite. O viés dominante consistiu-se em atribuir à doutrina uma feição essencialmente religiosa. O Espiritismo brasileiro sofreu, portanto, as interferências do catolicismo popular e das religiões de possessão de matriz afro-brasileiras – que para Ortiz significaram, ao mesmo tempo, o “empretecimento” da matriz francesa e o “embranquecimento” das tradições de matriz africana[27] –; como também sofreu a interferência do catolicismo tradicional – que para Stoll teve a finalidade de conformar o espiritismo a um ethos nacional já consolidado, favorecendo a propagação e aceitação da doutrina entre a população. Tais relações com a sociedade brasileira influenciarão um grupo de intelectuais a edificar uma nova religião ao longo do século XX: a Umbanda.






















2 Contribuições e oposições do Kardecismo à Umbanda














A doutrina de Allan Kardec, no aspecto religioso, postula a existência de um Deus criador, onipotente e onipresente, porém inacessível aos homens dada a incomensurável distância que os separa. Mais próximo estão os espíritos dos mortos para quem a missão de ajudar a humanidade é o meio de expiar as faltas das vidas passadas e assim progredir em busca da perfeição. Segundo a versão mais recorrente entre os espíritas, o universo está constituído por diferentes planos hierárquicos que variam em uma escala que vai do plano mais inferior (próximos à matéria) ao plano mais elevado (de suprema perfeição espiritual). A lei da evolução cármica consiste na contínua ascensão do espírito desde o plano inferior até o mais alto. Neste contexto, o planeta Terra ocupa um dos mais baixos escalões, onde campeiam o mal, os vícios, a ignorância, o sofrimento e as doenças. A Terra, por esse mesmo motivo, é o lugar de expiação e de sofrimento onde os seres humanos podem se purificar e se redimir, buscando a perfeição pela prática do bem, da caridade e do amor ao próximo.






A capacidade ou o dom de manter comunicação com os espíritos é um atributo da mediunidade. De acordo com a doutrina Espírita, apenas algumas pessoas são médiuns. Por esse motivo, aqueles que nascem com o selo da mediunidade precisam aprender a lidar com os aspectos fenomenológicos da comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos a fim de promoverem a evolução do próprio espírito. Ao Kardecismo caberia, em primeiro lugar, orientar os médiuns no desenvolvimento da mediunidade e, em segundo, promover reuniões nas quais os espíritos manifestados ajudariam os demais seres humanos. Assim, tanto os médiuns quanto os espíritos pagariam suas faltas, credenciando-se a ascender na hierarquia espiritual.






Como vimos no primeiro capítulo, o aspecto religioso do Kardecismo constituiu-se no traço distintivo do espiritismo brasileiro e, talvez, seja a causa da sua rápida expansão[28]. No Brasil duas correntes disputaram à atenção dos adeptos: uma, mais erudita, aproximava-se do pensamento racionalista, cultivando um interesse pelos aspectos científicos do sobrenatural; a outra era mais popular e sua atividade doutrinária estava mais próxima das práticas de cunho assistencial, como a distribuição de roupas e alimentos entre famílias que não teriam condições de se manter[29]. As sessões de passes, doutrinação e desobsessão também são consideradas pelos adeptos do Espiritismo como serviços assistenciais, nas quais os espíritos trazem palavras de consolo, proporcionando lenitivos para os males físicos e espirituais.






Durante as sessões não era raro a manifestação de espíritos de escravos e indígenas ao lado de espíritos de maior prestígio. Inicialmente identificáveis pela lembrança de suas vidas passadas, estas categorias de espíritos vão gradativamente perder os traços individualizadores e constituir aspectos mais genéricos tais como pretos-velhos e caboclos, aproximando-se assim as sessões kardecistas do “baixo-espiritismo”[30]. O Conselho Federativo Nacional da Federação Espírita Brasileira chegou até a reconhecer, em 1926, a Umbanda como um tipo de “espiritismo” desvinculado da doutrina Espírita[31]. Entretanto, os fiéis mais ortodoxos não admitiam a interligação entre o Kardecismo – associado aos valores consentidos pela elite – e a macumba – que ainda estava presa aos subterrâneos sociais. No melhor dos casos, os espíritos de preto-velhos ou de caboclos eram doutrinados de modo que pudessem continuar seu caminho na escala evolutiva.






Ele não pode ser confundido com um espírito de luz, como o é um espírito de médico, de padre, de freira, ou de um sábio qualquer, posto que no universo kardecista a cultura do espírito corresponde à cultura de sua “matéria”. Como poderia um analfabeto prescrever sabedoria? Quem levaria a sério a ignorância do espírito de um antigo escravo? – este deve permanecer em seu “lugar”. [32]














Renato Ortiz testemunhou, por exemplo, o diretor de um centro espírita orientar uma médium a procurar outro lugar para “trabalhar” sua mediunidade, uma vez que ela incorporava um “guia de terreiro”. O referido guia, um preto-velho, “até falava muito bem”, mas era um espírito indesejado e não poderia se manifestar na mesa kardecista[33]. Em contrapartida, José Luiz Ligiéro, argumenta que a diferença mais marcante da Umbanda é a disponibilidade para aceitar a todos, vivos e mortos, do jeito que são. Nela há espaço para a incorporação e a convivência das mais diversas heranças étnicas e culturais.






É assim que, na Umbanda, ouvem-se coisas inusitadas como, por exemplo, o espírito de uma prostituta, que viveu e morreu na zona do Mangue, aconselhando uma dona de casa do Méier sobre como obter e proporcionar mais prazer no sexo. O mais interessante é que prestar esse tipo de ajuda também conta pontos na escala umbandista da evolução espiritual. [34]














Percebe-se, portanto, no hábito de excluir das sessões kardecistas a participação de espíritos entendidos como “atrasados” a influência de um pensamento do tipo determinista[35], no qual os espíritos manteriam na vida além túmulo as mesmas condições sociais e culturais da última passagem pelo mundo terreno. Com o passar do tempo, alguns adeptos do Espiritismo levantaram-se contra esse “determinismo espiritual” e aproximaram-se das manifestações do espiritismo popular, isto é, das macumbas. Os próprios espíritos que se manifestavam nas sessões kardecistas estimulavam essas aproximações. O espírito do Irmão X, em mensagem ditada ao médium Francisco Cândido Xavier – o famoso Chico Xavier –, recomendava aos companheiros do Espiritismo para:






(...) não se aproximarem dos nossos benfeitores humildes como catedráticos orgulhosos e envaidecidos, sim, como irmãos verdadeiramente interessados no bem. E, sobretudo, (...) ao ensinarmos a Pai Mateus e Mãe Ambrósia as lições acerca das leis de Kepler, dos movimentos de Brown e das ondas de Marconi, aprendemos com eles, por nossa vez, as lições de humildade, devotamento e renúncia, nas quais já se diplomaram, desde muito, negando a si mesmos, tomando a sua cruz e seguindo a Nosso Senhor Jesus-Cristo. [36]














Em outra mensagem ditada ao mesmo médium, desta vez pelo espírito de Emmanuel, o trabalho dos umbandistas era reconhecido como “louvável”, desde que orientado para a caridade. Emmanuel, contudo, deixou escapar que o espiritismo codificado por Kardec estaria em um estágio de desenvolvimento superior ao do espiritismo de Umbanda, comparando esta religião a uma “província” carente da atenção do Estado:






Encontramos em Umbanda uma Província do Espiritismo, necessitada de carinho e de proteção da força governamental e orientadora. Se nós, a pretexto de sermos, puros, a pretexto de sermos mais bem orientados que os outros, desampararmos os irmãos que necessitam da nossa boa vontade, naturalmente que nosso serviço estará pecando pela base. Assim, não vemos motivos para nos escandalizarmos com as Linhas de Umbanda, e sim um imperativo de trabalho, de cooperação, de maior entendimento e de maior manifestação de amor da nossa parte. [37]














Ubiratan Machado, por sua vez, avalia que as aproximações dos espíritas com a macumba marcaram a eclosão de um espiritismo nacionalista, que permitiria aos médiuns sintonizar-se com os espíritos que plasmaram nossa nacionalidade e que tiveram um destino, ao mesmo tempo, amargo e purificador:






(...) índios que habitavam o paraíso tropical perdido pela intromissão do homem branco, antepassados brancos que penaram neste planeta de amarguras, e, sobretudo, negros velhos, símbolos de um sofrimento humano (...). Meio santo de cachimbo à boca e linguajar arrevesado, mas também protomártires de nossa formação e protomitos de nossa decantada democracia racial, então em acelerado processo de elaboração. [38]














Mesmo assim, estes espíritas entediados pela ortodoxia kardecista, mantiveram atitude dúbia. Se, por um lado, aceitavam as contribuições de espíritos de negros (preto-velhos) e de indígenas (caboclos) nas sessões de mesa “branca”; por outro, não admitiam a presença de elementos incompatíveis com as concepções “evoluídas” do kardecismo tradicional. A apropriação do ritual da macumba foi, portanto, seletiva e depuradora, eliminando-se tudo o que chocava as mentalidades “esclarecidas”, como o sacrifício de animais, as oferendas de comida e bebida, o uso de fumo ou o emprego de instrumentos de percussão[39].






Foram descartados aqueles elementos considerados primitivos e muito próximos da matéria. Entretanto, não se podia descartar todo o conjunto de instrumentos e objetos rituais mobilizados pela macumba. Se, por um lado, o Kardecismo oferecia à Umbanda um arcabouço doutrinário capaz de articular, numa nova estrutura, práticas religiosas desvinculadas de antigos mitos; por outro lado, para justificar (domesticar) a permanência de determinados elementos materiais nos ritos recorreu-se a um “discurso científico”[40], no qual as noções de química e física coexistem com a astrologia, o ocultismo e a teosofia. Mesmo contando com o aval da ciência para a manutenção de alguns rituais mágicos, Cândido Procópio Camargo avalia que quanto mais próximo do Kardecismo estiver a Umbanda, menor será a riqueza ritualística e a ênfase nas práticas mágicas, em virtude de uma ênfase maior na interiorização da experiência religiosa, no aprendizado doutrinário e na vida moral[41]. Mário Teixeira de Sá, por seu turno, sublinha que o recurso do “discurso científico” ao mesmo tempo em que legitimava as práticas umbandistas negava espaço para outros saberes religiosos.






Se, atrelado ao discurso afirmativo [científico] estavam conceitos de civilização, progresso, evolução e modernidade, ao negativo, o que buscava deslegitimar os outros saberes, estavam os seus antagônicos como: barbárie, atraso cultural e inferioridade racial[42].














Segundo Renato Ortiz, o discurso científico oferece um liame de continuidade entre as práticas mágicas populares e a ideologia Espírita, tendo como fio condutor a reinterpretação das tradições da cultura afro-brasileira de acordo com um novo código fornecido por uma sociedade urbana e industrial. “O que caracteriza a religião [umbandista] é o fato de ela ser o produto das transformações sócio-econômicas que ocorrem em determinado momento da história brasileira”[43]. Assim, o autor explica que as transformações sociais do início do século XX estimularam, praticamente ao mesmo tempo, o aparecimento de dois movimentos distintos: o “embranquecimento” das culturas afro-indígenas, os descendentes de índios e negros negariam as próprias tradições e aceitariam a cultura européia como superior a fim de ascender socialmente; e o “empretecimento” da cultura européia, a partir do consentimento da presença de elementos da macumba nas sessões kardecistas, desde que submetidos ao controle da cultura dominante.






Acreditamos que não havia, inicialmente, entre os dissidentes do Kardecismo, a consciência de um movimento que se propunha formar e difundir uma nova religião. É somente após o aparecimento de práticas mais ou menos semelhantes, alinhavadas pela mesma ideologia, que surgirá a preocupação em organizar a Umbanda como uma religião. Entretanto, percebe-se que o status de cientificidade que as práticas kardecistas desfrutavam, associadas à presença significativa de membros da elite social entre os adeptos da religião, influenciou significativamente a produção literária dos intelectuais umbandistas, uma vez que o Espiritismo proporcionava um espaço mais seguro para a manifestação de suas práticas religiosas.






Por exemplo, no livro Umbanda, essa desconhecida, o umbandista Roger Feraudy relata o encontro de um consulente com um preto-velho, no qual o primeiro perguntou sobre a diferença entre Umbanda e Kardecismo. O espírito – identificado como sendo de Pai Tomé – resumiu a resposta em uma frase: “Kardecismo é Jesus ensinando, e Umbanda é Jesus trabalhando”[44]. A resposta remete ao mundo dos espíritos a mesma divisão social encontrada no mundo do trabalho entre os vivos, onde a capacidade produtiva de cada elemento reflete a condição de uns (branco, europeu, erudito, civilizado) ensinar e de outros (negros, afro-brasileiro, ignorante, bárbaro) apenas trabalhar, isto é, receber ordens.






E o autor, não parou nesse exemplo. Em nota de rodapé, procurando corroborar com a resposta daquele preto-velho, conta que testemunhou um pai questionar a eficácia de um chá receitado pelo Caboclo Mata Virgem para combater a febre renitente que se abatera sobre sua filha. O caboclo não titubeou na resposta: “dê o chá que estou mandando, [sou] doutor Bezerra de Menezes”[45]. Aqui, a eficácia do chá não se dá pelo fato do caboclo ser o espírito de um indígena acostumado a lidar com as propriedades terapêuticas da flora brasileira, mas sim porque quem receitou era um ilustre médico – aliás, um dos principais divulgadores do Kardecismo no país – que “baixava” também, na forma de caboclo, nos terreiros de Umbanda. Mais uma vez, a divisão social do mundo dos vivos se fez presente no além túmulo: a cultura acadêmica (branca e científica) colocou-se acima da cultura popular (indígena e empírica). Nos dois casos narrados por Feraudy, as práticas umbandistas foram legitimadas pela presença do Kardecismo.


















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[1] Texto extraído da dissertação de mestrado em História Comparada da UFRJ: Entre a macumba e o espiritismo – uma análise comparativa das estratégias de legitimação da umbanda durante o Estado Novo.






[2] Comenta-se que o pseudônimo Allan Kardec, lhe fora revelado em uma sessão espírita como sendo o nome que tivera em uma encarnação anterior, quando viveu como um druida na antiga Gália, na época do imperador romano Júlio César.






[3] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Apud STOLL, Sandra Jaqueline. Espiritismo à Brasileira. São Paulo: Edusp, 2003, p. 36.






[4] KARDEC, Allan. O espiritismo em sua mais simples expressão. Apud STOLL, 2003, p. 36.






[5] Cf. DARWIN. A Origem das espécies (1859).






[6] Cf. STOLL, 2003, p. 44-46.






[7] Idem. Ibidem, p. 47.






[8] LIGIÉRO e DANDARA, 1998, p. 62.






[9] MACHADO. Ubiratan. Os Intelectuais e o Espiritismo. 2ª Edição. Niterói: Lachântre, 1997, p. 73.






[10] SILVEIRA, Don Manuel Joaquim da. Carta Pastoral. In: MACHADO, 1997, p. 90.






[11] Idem. Ibidem, p. 129.






[12] Id. Ibid.






[13] A prática receitista consistia em um espírito prescrever um tratamento médico ao consulente. Na maioria das vezes, os medicamentos prescritos eram homeopáticos e a Federação Espírita Brasileira durante muito tempo aviava essas receitas. Por esse motivo, esta prática foi muito combatida na primeira metade do século XX, sendo percebida como exercício ilegal da medicina. Sobre as atividades de Federação Espírita Brasileira ver GUIMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.






[14] STOLL, 2003, p. 51






[15] Idem. Ibidem.






[16] Id. Ibid, p. 53.






[17] CAMARGO. Cândido Procópio. Kardecismo e Umbanda. São Paulo: Pioneira, 1961, p. 4.






[18] STOLL, Op. Cit, p. 51.






[19] Idem. Ibidem, p. 55.






[20] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 79 edição. Brasília: Federação Espírita Brasileira, [1997?], p. 367.






[21] MACHADO, 1997, p. 172.






[22] Idem. Ibidem.






[23] MACHADO, 1997, p. 165.






[24] STOLL, 2003, p. 58. Nesta linha de pensamente encontrar-se-iam as obras de Cândido Procópio Camargo e Patrícia Birmam.






[25] Idem. Ibidem. Diana Brown, Renato Ortiz e Yvonne Maggie, são exemplos deste viés interpretativo.






[26] STOLL, 2003, p. 61.






[27] Cf. ORTIZ, 1999.






[28] Cf. Item 2.4 – O Kardecismo no Brasil, p 46.






[29] STOLL, Sandra Jacqueline. Espiritismo à Brasileira. São Paulo: Edusp, 2003, p. 51.






[30] Baixo espiritismo era como os kardecistas classificavam as religiões onde se manifestavam espíritos pouco evoluídos culturalmente, como era o caso dos caboclos e pretos-velhos que integravam a macumba.






[31] Cf. MACHADO, Ubiratan. Os Intelectuais e o Espiritismo. 2ª edição. Niterói: Lachâtre, 1997, p. 14.






[32] Ortiz, 1999, p. 46. Grifo nosso.






[33] Idem. Ibidem.






[34] LIGIÉRO e DANDARA, 1998, p. 65.






[35] O determinismo marcou o pensamento teleológico da sociedade burguesa ao longo do século XIX e penetrou também na doutrina kardecista.






[36] XAVIER. Francisco Cândido (pelo espírito Irmão X). Lázaro Redivivo. 11ª edição. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005, p. 179.






[37] XAVIER, Francisco Cândido (pelo espírito de Emmanuel). As linhas de Umbanda. Apud. ANJOS, Luciano. A Umbanda na palavra esclarecida da FEB e dos Espíritos. Jornal Espírita, São Paulo, Abril de 1978, p. 6.






[38] MACHADO, 1997, p. 172.






[39] ORTIZ, 1999, p. 47.






[40] O “discurso científico” apóia-se nas produções culturais que buscam legitimidade no conhecimento erudito. Cf. ORTIZ. 1999, p. 173. Este tema será abordado mais adiante, no item 4.5 deste capítulo.






[41] CAMARGO, Cândido Procópio. Kardecismo e Umbanda. São Paulo: Pioneira, 1961, p. 51.






[42] Teixeira de Sá, Mário. A invenção da alva nação umbandista: a relação entre a produção historiográfica brasileira e a sua influência na produção dos intelectuais da Umbanda (1840-1960). Dissertação (Mestrado em História) – UFMS / CPDO. Dourados: UFMS, 2004, p. 36.






[43] ORTIZ, Op. Cit, p. 48.






[44] FERAUDY, Roger. Umbanda, essa desconhecida. 4ª edição. São Paulo: Conhecimento, 2004, p. 126.






[45] Idem. Ibidem, p. 127.



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